Você recebeu uma carta! #7
edição 7: A caixa de pandora da saúde nos Estados (des)Unidos da América
Nova York, 8 de dezembro de 2024
Caro leitor,
Esta carta chega com atraso, porque fui tomada pelo ímpeto de escrever algo sobre os últimos acontecimentos. Explico: Na quarta passada o CEO da maior seguradora (plano de saúde) do país, a UnitedHealthcare, foi assassinado em plena luz do dia em Manhattan.
Esse fato foi como abrir uma caixa de pandora com todos os podres relativos ao sistema de saúde do país. A podridão desse meio não é novidade, mas o fato da população estar falando disso talvez seja. O que antes parecia algo velado, escondido na caixa, agora está sendo colocado em palavras por todo canto, principalmente nas redes sociais e fóruns de discussão como o Reddit.
Abrir essa caixa de pandora é o equivalente a expor os traumas e caos que usuários, pessoas, famílias vivem diariamente ao terem seus tratamentos e procedimentos negados pelas seguradoras. Eu costumo dizer que o usuário enfrenta no mínimo duas batalhas: a primeira com sua própria doença e a segunda com o plano de saúde.
Os planos de saúde enfrentam uma série de problemas que colocam em risco a saúde e o bem-estar dos pacientes, especialmente devido a práticas de recusa de cobertura, atrasos na aprovação de tratamentos e altos custos para os beneficiários. Negação de cobertura é uma das maiores questões, deixando indivíduos sem acesso a cuidados essenciais. Além disso, disputas sobre a necessidade médica são frequentes, com tratamentos recomendados por médicos sendo negados por não serem considerados "necessários", mesmo que possam ser vitais para o paciente.
Porcentagem de pedidos de tratamento negados pelos planos (1):
Outro grande problema são os atrasos na aprovação de tratamentos. A exigência de autorização prévia para procedimentos ou medicamentos causa atrasos no início do tratamento, o que pode agravar a condição do paciente. Além disso, o processo de apelação contra uma negação pode levar meses, durante os quais o estado de saúde do paciente pode piorar, gerando ainda mais sofrimento e complicações.
Os altos custos para o usuário do plano também representam um obstáculo significativo para muitos pacientes. Franquias elevadas e co-pagamentos podem levar pacientes a adiar ou até evitar tratamentos, especialmente quando não podem arcar com esses custos. Além disso, faturas-surpresa podem ocorrer quando os pacientes recebem cobranças inesperadas por serviços fora da rede de cobertura, mesmo em situações de emergência.
As restrições farmacêuticas impõem barreiras adicionais aos pacientes. O modelo de terapia em etapas obriga os pacientes a tentar medicamentos mais baratos antes de obter a aprovação para tratamentos mais eficazes, embora sejam mais caros. Além disso, exclusões de medicamentos fora da lista de fórmula podem significar que medicamentos essenciais, como os que salvam vidas, não sejam cobertos, caso não estejam na lista preferencial da seguradora.
Bem, eu poderia continuar a lista dos problemas, mas fiquemos com estes por ora.
De volta a cena do crime: Três tiros nas costas do CEO com as palavras escritas em cada munição: Deny, defend, depose. Essas três palavras juntas, nesta sequência, formam a expressão "negar, defender e depor". Ela frequentemente aparece em contextos jurídicos, de seguros ou litígios, refletindo estratégias ou ações tomadas em disputas ou processos.
1. Negar
Definição: Recusar, rejeitar ou não admitir algo. Contexto: Em disputas legais ou de seguros, "negar" refere-se a rejeitar uma reivindicação ou solicitação, muitas vezes com base em termos, condições ou falta de evidências. Exemplo: Uma seguradora pode negar um pedido, alegando que o dano não está coberto pela apólice.
2. Defender
Definição: Proteger-se contra uma acusação, ataque ou reclamação legal. Contexto: No contexto jurídico, refere-se a apresentar argumentos, evidências ou estratégias para justificar ações ou refutar acusações. Exemplo: Uma empresa pode se defender no tribunal se for acusada de negar indevidamente uma reivindicação.
3. Depor
Definição: Prestar depoimento sob juramento, geralmente fora do tribunal, como parte do processo de descoberta legal. Contexto: Depoimentos são processos formais em que as partes envolvidas em um caso são questionadas sob juramento, com suas respostas registradas para possível uso no tribunal. Exemplo: Um advogado pode tomar o depoimento de um perito da seguradora para entender a razão por trás de uma negativa de cobertura.
O Livro Deny, Delay, Defend
Muitas pessoas associaram as palavras escritas na munição com O livro Deny, Delay, Defend do autor Jay M. Feinman, que explora como as seguradoras e corporações utilizam estratégias de negação, adiamento e defesa para proteger seus interesses financeiros, muitas vezes à custa das necessidades e dos direitos dos consumidores. Essas estratégias são fundamentais para a sobrevivência de um sistema corporativo que se baseia em maximizar lucros e minimizar responsabilidades.
Deny (Negar): Reflete a recusa em reconhecer a legitimidade de uma reivindicação ou a necessidade de intervenção.
Delay (Adiar): O adiamento é uma tática de prolongar a solução ou decisão de um problema, o que impede a mudança ou a resolução.
Defend (Defender): Defender é a resposta da corporação, quando confrontada com a negação ou adiamento de responsabilidades. A defesa, muitas vezes, envolve argumentos que justificam as ações da empresa, preservando sua imagem e posição de poder.
Cenário atual
Não sabemos as consequências e motivações exatas desse crime. Por enquanto, o fato colocou luz sobre um debate complexo e que merece atenção da população. Merece ainda, uma discussão honesta sobre as reais práticas em jogo no campo da saúde que, talvez, desperte a população de um sono profundo que impede mudanças a níveis estruturais que impactam suas próprias vidas.
O cenário atual apresenta uma contradição: apesar de ser o sistema de saúde mais caro do mundo para o consumidor, a expectativa de vida nos EUA (o pais mais rico do mundo em termos absolutos e per capita) é menor que a maioria do mundo desenvolvido.
Gráfico e tabela sobre expectativa de vida (3):
Após o ocorrido, um plano de saúde (Blue Cross) anunciou (2) que voltou atrás com a decisão de limitar a anestesia para procedimentos depois do ocorrido. Isso mesmo, ANESTESIA! É sabido que cirurgias são o maior gasto das seguradoras. Dessa forma,
limitar e/ou dificultar o acesso a anestesias é um movimento estratégico para inviabilizar cirurgias, ja que nenhuma cirurgia é possível ser feita sem anestesia.
Por fim, algo inédito se revela: um único assunto tem conseguido unir os Estados des-Unidos da América. Se antes a pauta dos problemas de planos de saúde estava apenas no radar dos ativistas, agora ela se amplia à população em geral.
Saúde é coisa séria, estamos falando de vidas, muitos perderam familiares e amigos pela recusa de serviços pelos planos de saúde. Percebo que a discussão vai além da lógica “fla-flu”, onde a estratégia política de culpar a esquerda ou culpar a direita se torna insuficiente para mudar um sistema que está nas mãos de bilionários.
Vamos aguardar os próximos capítulos…
Mariana Anconi
(1)Link do gráfico: https://www.bostonglobe.com/2024/12/05/data/unitedhealthcare-claim-denial-rates/
(2) https://www.nbcnews.com/health/health-care/anthem-blue-cross-blue-shield-time-limits-anesthesia-surgery-rcna183035
(3) gráfico e tabela retirados do video: