Nova York, 22 de Junho de 2025
Querido leitor,
Já faz um tempo que gosto de visitar casas de arquitetos. Em newsletters anteriores escrevi sobre a casa de vidro de Lina Bo Bardi e a casa do arquiteto Artigas, ambas em São Paulo. É uma curiosidade que cultivo em mim sobre os diferentes modos de viver e de habitar os espaços. Penso que as casas, em alguma medida, são o reflexo de alguns ideais, valores, mas também do caos interno que nos habita.
Habitar poeticamente o mundo é repeti-lo na intimidade. Bachelard
Hoje quero contar sobre a visita à Glass House, em New Canaan, no estado de Connecticut. A casa, projetada pelo arquiteto Philip Johnson em 1949, é um símbolo da arquitetura moderna nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, um manifesto sobre exposição, intimidade, funcionalidade.
Construída inteiramente de vidro, paredes transparentes do chão ao teto, ela desafia a noção básica de casa como abrigo, proteção ou refúgio. Estar dentro dela é como habitar, ao mesmo tempo, a paisagem ao seu redor.
Não há paredes que nos separem do entorno; apenas linhas que nos situam com sutileza entre dentro e fora. A luz atravessa todos os ambientes, é possível ver o reflexo das árvores no vidro, dando uma sensação de estarmos flutuando, como se estivéssemos morando dentro de um pensamento.
A visita foi guiada por uma historiadora simpática e muito experiente. Éramos um grupo de 10 pessoas de diferentes cidades, culturas e interesses. No grupo, nenhum arquiteto, apenas curiosos, assim como eu.
Começamos nossa visita com uma caminhada pela área verde que “esconde” a casa dos olhares curiosos da rua. No caminho, fomos descobrindo o universo criado por Jonhson, meticulosamente construído e pensado em cada detalhe. A historiadora avisou: "não se enganem: até o que parece despretensioso foi cuidadosamente planejado."
Porém, algo não planejado aconteceu. Fomos surpreendidos por uma chuva forte no meio da visita. Corremos em busca de guarda-chuvas e, ao nos abrigarmos, a chuva rapidamente parou, dando espaço para um lindo dia de sol, totalmente inesperado.
Assim, nos vimos caminhando com guarda-chuvas num dia lindo de sol. Uma contradição interessante que escapou naquele lugar meticulosamente planejado.
Mostrar e esconder
Adentramos a casa e parecia estarmos fora ainda. Móveis elegantes e algumas peças de arte. Uma cozinha minimalista, uma cama, uma escrivaninha, um banheiro e a sala com uma chaise (divã).
Ao sairmos da casa, nos deparamos com a segunda dualidade: ao lado oposto a essa transparência radical da Glass House, está a Brick House, sua irmã oposta, feita de tijolos, com pequenas janelas redondas e interior reservado. Ela tem um ar de bunker, guarda ambientes e intimidades. Lá ficava o quarto, biblioteca e o banheiro de Johnson.
Achei interessante esse jogo de oposição. De um lado a transparência, luz e exposição do vidro. Do outro, uma casa fechada em suas paredes, sem muito espaco para reflexos e reflexões. Diferente da Glass House, a Brick House garante a vida íntima cuidadosamente resguardada, escondida atrás da opacidade dos tijolos. Em vez de brigarem, elas se complementam.
Essa convivência entre as duas casas me pareceu interessante para pensar nesse jogo do que que se revela quando algo se esconde e o que se esconde quando algo está exposto.
A casa de vidro hipnotiza por se deixar ver, mas é a de tijolos que acolhe o que não pode (ou não quer) ser visto. O contraste entre a Glass House e a Brick House me fez pensar na velha dialética entre o mostrar e o esconder. Uma dialética que muito interessa aos psicanalistas. Não raro, lançamos a pergunta a nossos pacientes: o que se revela ao tentar esconder?
Freud dizia que a psicanálise é uma escuta do recalcado, do que se escondeu, não necessariamente por escolha consciente, mas como uma resposta, própria da constituição subjetiva. Na análise, a dimensão de sujeito revela-se nos intervalos entre significantes, entre as casas.
Reconhecer as dualidades que habitam o sujeito é fundamental para compreender sua complexidade e suas contradições. Desejo e culpa, amor e ódio, força e fragilidade, opostos que não se anulam, mas coexistem e se tensionam a experiência subjetiva. Ignorar essas polaridades empobrece a escuta e reduz o sujeito a explicações simplistas.
As duas casas ilustram essa coexistência de opostos: a transparência e a exposição de um lado, a solidez e o resguardo do outro. Assim como essas casas simbolizam modos distintos de habitar o mundo, o sujeito também se desvela entre a visibilidade e o escondido, entre o que mostra e o que sustenta discretamente. Levar em conta essas dimensões opostas é acolher o sujeito em sua verdade mais particular que se situa no “entre”.
Uma casa transparente no subúrbio americano
A cidade de New Canaan, no estado de Connecticut, é conhecida por seu cenário bucólico, sua paisagem bem cuidada e a arquitetura residencial característica do subúrbio americano de classe média alta. É uma cidade onde o privado domina. Cercas, gramados milimetricamente aparados, ruas silenciosas. Não há caos, não há atravessamentos bruscos. Há controle.
É curioso, portanto, que Johnson tenha escolhido esse cenário para construir sua casa radicalmente exposta. Uma casa de vidro no coração do subúrbio é, por si só, uma provocação. A casa está inserida num terreno extenso, afastada da rua, protegida por paisagem. É um espaço que parece público, mas sustenta sua dimensão privada. É um espaço que parece uma vitrine, mas não está disponível e acessível a todos.
Até a próxima!
Mariana Anconi