Nadando contra a correnteza
Passando para dizer "oi"; sobre não falar a mesma língua; analista imigrante; coragem, afinal.
Olá, queridos. Como estão neste sábado?
Apesar da correria nesse início de ano, sigo tentando encontrar espaços na agenda para continuar escrevendo por aqui. Diminuí muito as atividades nas redes sociais, simplesmente por ter que que priorizar o mestrado nesse momento. E já que o mestrado tem tomado 90% do meu tempo, se torna quase impossível não escrever algo sobre essa fase da vida.
Nesse semestre comecei uma espécie de estágio obrigatório que inclui atendimentos em uma clínica privada com uma carga-horária bem puxada. Precisarei cumprir estas horas de atendimento para poder concluir o mestrado no ano que vem.
Bom, alguns podem pensar “ah, mas deve ser tranquilo esse estágio, você já tem experiência com a clínica e com a teoria". Em parte é verdade, eu atendi em São Paulo de 2012 a 2017 tanto em ambulatórios no SUS, quanto no meu consultório particular. O ponto é que, ao começar essa experiência de estágio, que inclui todo um contexto institucional (clínica e universidade), entendi que o percurso feito no Brasil não responde a todas as demandas daqui.
Cada território tem suas leis e formas de trabalhar com pacientes e, aqui, independente da abordagem escolhida, há protocolos que todo profissional de saúde mental precisa seguir.
Talvez uma das coisas mais desafiadoras nesse momento, seja sustentar uma teoria marcada por leituras superficiais e clichês.
Quando digo aos supervisores que trabalho na linha lacaniana, costumo receber de volta uma cara de paisagem e, por fim, acabam me colocando no balaio da Psicodinâmica. A sensação tem sido como nadar contra a correnteza. Exige um duplo esforço, tanto por parte de sustentar a psicanálise neste território e sustentar o lugar de analista imigrante, com todos os desafios que isso traz.
Apesar do desafio que aceitei (não sem reclamações ou questões) fui lançada a um lugar novo em relação a teoria lacaniana. Acostumada a conversar com pares e falarmos a “mesma língua” da psicanálise lacaniana no Brasil, aqui em NY, tenho feito um retorno às bases e fundamentos dessa prática, não à toa coordeno um grupo de estudos sobre o Seminário XI (conceitos fundamentais da psicanálise).
Entendi que para conseguir dialogar com colegas e supervisores que não não falam a “língua da psicanálise lacaniana” eu precisaria saber explicar de forma clara e objetiva a minha prática. E, para isso, me vi na tarefa de sistematizar ou pelo menos colocar de forma mais objetiva minhas intervenções com pacientes, para então poder dialogar com estes outros profissionais. A princípio parecia que eu teria que explicar o inexplicável. Só que não é assim.
É preciso saber argumentar e explicar nossa prática, explicar com conceitos o que faz um analista lacaniano a quem não é lacaniano.
E, então, converso e explico aos colegas porque finalizei a sessão em determinado ponto e não outro. Ou, porque fiz determinada pergunta ao paciente em vez de “desafiá-lo” (challenge) como muitos dizem aqui. Ou, porque não passei atividades (tipo dever de casa) para ele fazer entre sessões (muito comum aqui). Porque fiquei em silêncio em determinado momento do atendimento, etc.
Nosso trabalho é difícil, complexo e bonito. Passa pela escuta do que está para além do dito, nossas pontuações vão no sentido do que paciente não consegue escutar de si, como diz Lacan (1964, p. 250)
Ouvir o que fala por trás
da tapeação do paciente.
Tudo isso que menciono dessa experiência já foi vivido por outros colegas que migraram antes de mim. Porém, sabemos que essa mesma experiência é atravessada de forma muito particular por cada um. Cada analista imigrante precisa construir esse percurso nada fácil. Também conheço colegas brasileiros que chegaram depois de mim, e sempre que possível tomamos um café, conversamos, trocamos experiências.
Eu acho que esse texto é apenas para lembrar a mim mesma e aos demais colegas que estão nesse percurso, de que é preciso coragem, talvez até mais do que havíamos planejado. Não esquecer também de se cuidar e ter pares a sua volta para que aos poucos essa ponte seja atravessada. Na verdade, estamos construindo a ponte.
Tem um trecho muito conhecido de Guimarães Rosa que me acompanhou durante o mestrado que fiz no Brasil, e agora, nesse segundo mestrado, recorro a ele novamente:
O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
Até a próxima newsletter!
Mariana Anconi